A diminuição de
investimentos em políticas públicas que ajudam a garantir direitos a
crianças e adolescentes afeta principalmente meninas, aprofundando a
desigualdade de gênero. É o que diz a pesquisa “Infância, gênero e
orçamento público no Brasil” realizada pelo Centro de Defesa da Criança e
do Adolescente (Cedeca).
O estudo analisa
os dados orçamentários do País levando em conta o gênero, região, classe
social, entre outros fatores. Foram constatadas reduções drásticas nos
gastos com ações que funcionam em combate a problemas que tem como
principais vítimas as meninas, como o casamento infantil, a exploração
sexual, homicídios na adolescência e evasão escolar.
Dillyane Ribeiro,
técnica responsável pela pesquisa e coordenadora do núcleo de
monitoramento de políticas públicas do Cedeca, explica que o Brasil
adota a Convenção de Direitos da Criança, mas não segue a observação do
documento que recomenda a elaboração de orçamentos públicos priorizando o
direito das crianças. “O orçamento não tem servido a isso, tem ignorado
as desigualdades”.
A análise mostra
que gastos com cultura, educação, direitos da cidadania e saneamento vem
sofrendo diminuições desde 2016, ano de forte crise financeira. A verba
destinada a políticas para crianças e adolescentes em 2018 foi de 3,57%
do Produto Interno Bruto (PIB), 0,05% menor que no ano anterior. Além
disso, ações orçamentárias criadas para esse público deixaram de ser
executadas e tiveram recursos previstos deslocados para outras áreas.
“Isso é reflexo da
falta de compromisso da política de estado. O enfoque nos direitos
humanos que deveria orientar [o orçamento] vem sendo renegado”. A
pesquisadora expõe que a continuidade de projetos que focam na
manutenção de direitos é sempre ameaçada. Mesmo estando presentes nas
leis orçamentárias aprovadas, acabam sofrendo com a redestinação de
verba para áreas que “a sociedade não considera prioritárias”. Ela faz
uma crítica aos portais de transparência, que não disponibilizam a
informação do destino do dinheiro.
Quando o orçamento
deixa de priorizar educação e saúde, para Dillyane, a assistência para
meninas fica mais prejudicada. Historicamente, segundo a pesquisa, o
trabalho de cuidado de pessoas foi destinado às mulheres. Familiares
doentes, crianças ou idosos são majoritariamente assistidos pelas
mulheres, muitas vezes de forma não remunerada. Isso faz com que esse
contexto seja o mais citado por jovens de 15 a 29 anos como motivo para
não frequentar a escola no Nordeste, de acordo com a Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua da Educação de 2018.
“Precisa ter
creche, ter rede de saúde. Se não, sobra mais para as meninas e mulheres
que ficam encarregadas dessa tarefa”, diz Dillyane. No Ceará, assim
como na maioria dos estados do Nordeste, a evasão escolar é maior entre
meninas de 15 a 17 anos do que entre meninos da mesma faixa etária. As
horas dedicadas a cuidados e afazeres domésticos também é maior entre
crianças e adolescentes do gênero feminino na região. Por ser realizado
em ambientes privados e se tratar de uma tarefa esperada das mulheres, o
trabalho doméstico infantil costuma ser subnotificado, de acordo com a
pesquisa.
Mesmo com este
cenário, os investimentos em programas de combate ao trabalho infantil
têm recebido redução nos últimos anos. Em 2014, a rubrica orçamentária
denominada “Ações Estratégicas ao Enfrentamento ao Trabalho Infantil”
tinha destinados cerca de R$ 70 milhões, enquanto em 2018 o valor foi de
menos de R$ 10 milhões. Ações importantes do governo federal como a
“Concessão de Bolsa para Famílias com Crianças e Adolescentes
Identificadas em Situação de Trabalho’’ e a “Fiscalização para
Erradicação do Trabalho Infantil’’ tiveram zero reais disponíveis em
2018. Com isso, a pesquisa defende que a situação precária desse grupo
tende a ser agravada, perdendo direitos de viver uma infância e
adolescência de qualidade.
Fora da escola e
em ambientes hostis de trabalho, as meninas podem entrar em contato
ainda com outras vulnerabilidades, como a exploração e violência sexual e
o casamento precoce, que também são estudados na pesquisa. Outro ponto
levantado pelo estudo é a exposição à violência urbana dessas meninas
que, nos últimos anos, se tornaram alvos mais frequentes de crimes
contra a vida. “Precisamos de uma mudança radical na orientação da nossa
política. Apostar e investir na vida, na geração de saúde, na
diminuição das desigualdades, e não na política de morte e no
encarceramento, que só aumenta a violência”, opina Dillyane.
Por que meninas são mais vulneráveis?
Para a professora
do departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília (UNB),
Hayeska Barroso, desde cedo as meninas são criadas como mais frágeis.
Comportamentos ensinados dentro de casa, como falar baixo, silenciar
vontades e não se posicionar, segundo ela, serão reproduzidos também
fora do ambiente familiar. “O lugar imposto é o de subalternidade”, diz.
Assim, elas acabam expostas à violência e à negligência.
A pesquisa
O estudo do Cedeca
compõe uma pesquisa organizada pela organização não governamental Save
The Children e deve ser compilado com dados da Guatemala e do Peru. Os
resultados foram apresentados em outubro no Comitê de Direitos Humanos
da Assembleia Geral das Nações Unidas.
Pobreza na infância agrava desigualdade de gênero, diz pesquisadora
Para ganhar
roupas, sapatos e o caderno da escola, Francineide dos Santos da Silva,
49, teve de começar a trabalhar ainda com 11 anos. Em casa, na cidade de
Jaguaribe, interior do Ceará, sua mãe não teria condições de garantir
seu acesso aos estudos, já que trabalhava lavando roupas e ainda tinha
outros cinco filhos para criar sem ajuda do pai das crianças. Então,
Neide precisou fazer o que muitas meninas na mesma situação também
fizeram para se manter: realizar trabalhos domésticos em casas de
famílias da vizinhança.
Às 5 horas, todos
os dias, levantava para começar a cuidar da casa da patroa. Neide seguia
lavando roupas e limpando os cômodos até a hora de dar banho na filha
da mulher. “O que eu achava mais dificultoso era cuidar da especial
[pessoa com deficiência]. Ela era muito violenta, batia muito em mim, eu
chorava, ficava com roxo”, relatou. Os cuidados com a jovem tomavam
grande parte do dia de Neide, que só depois ia à escola, no período da
tarde. Ela morava na casa da família, não tendo direito a folgas no fim
de semana ou em feriados.
No colégio, a
maioria de suas colegas tinha rotina parecida. Todas trabalhavam desde
muito novas. “A gente no interior não tem negócio de cansaço, a gente
começa a trabalhar muito cedo. E eu precisava daquela roupa, precisava
estudar”, disse. Se tivesse continuado na casa dos pais, Neide acredita
que não conseguiria continuar nem até a quarta série, que foi quando
parou de ir a escola. Os irmãos também trabalhavam ajudando a mãe a
lavar roupas, mas segundo ela, tinham rotina mais tranquila.
A história de
Neide, mesmo após mais de 30 anos, ainda é vivida por diversas meninas.
De acordo com a Pnad Contínua de 2016, as meninas de 5 a 13 anos do
Nordeste dedicam pelo menos 8 horas semanais a trabalhos domésticos, 1,7
hora a mais que meninos da mesma idade. A média da região é a maior do
Brasil, que também tem o maior índice de pobreza do País. O dado
evidencia, conforme a pesquisa do Cedeca, que “a pobreza não só
propulsiona o uso da mão de obra infantil, mas aprofunda, sobretudo, a
desigualdade de gênero”.
O POVO