Relógios do Cariri: Ungerer da catedral e Coluna da Hora

Blog do  Amaury Alencar
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                                             Foto > George Wilson 



Iniciarei essa série de publicações sobre os relógios estacionários da região, fruto de minha peregrinação pelas torres e colunas do Cariri, falando do mais antigo relógio que temos registro, o Ungerer da Catedral do Crato. O maquinário, ainda hoje operante, é o resultado de uma verdadeira epopeia, que foi documentada em detalhes no jornal “O Araripe”, pioneiro na região, e dirigido por ninguém menos que João Brigido dos Santos.

Após a conclusão da segunda torre da matriz de Nossa Senhora da Penha, a população do Crato uniu-se em torno da campanha iniciada pelo vigário, Manoel Joaquim Aires do Nascimento, para a aquisição de um relógio para complementar o templo, e dar compasso ao dia a dia da cidade. Finalizada a arrecadação, ficou encarregado de executar a compra, Marcos Antônio de Macedo, deputado responsável pelo primeiro projeto de transposição do Rio São Francisco.

Aspecto geral da máquina. Foto: Roberto Junior

Macedo viajou até Paris, e na capital francesa assinou a ordem de compra de um mecanismo da Ungerer Freires, uma das mais afamadas fabricantes de relógios da Europa, localizada em Strasbourg, na Alsácia, território hoje pertencente a França, mas que no período estava sob domínio alemão, e por isso os periódicos e livros registraram o relógio como sendo de origem germânica. Era agente da fábrica em Paris, o Sr. Fournier, que tinha escritório a Rue de Malte, nº24, a quem Macedo pagou a quantia de 1.130 francos.

Até os dias atuais, viajar ao continente europeu representa uma despesa relevante. Naquele período, a viagem empreendida por Marcos Antônio era ainda mais desgastante. Sem estradas, geralmente se buscavam os portos de Petrolina, onde se embarcava em busca das conexões com o porto do Recife e depois o do Rio de Janeiro. O que hoje se faz em algumas horas, levava semanas, por terra, em lombo de animais, e por rios e mares, a bordo das embarcações dotadas de motores a vapor.

Feito o pedido, o relógio e seus componentes ficaram prontos em 1860, e foram remetidos imediatamente ao Brasil, desembarcando aqui em 1861. Outras vez as dificuldades de transporte se impuseram, principalmente, porque o Ceará não dispunha de um metro sequer de linhas de ferro ligando o interior a capital. Até o Crato, é presumível que os três caixotes com mais de 400kg de equipamentos tenham sido conduzidos em carros de boi.

Somente em 21 de janeiro de 1863, o relógio foi montado e posto para trabalhar, demanda que se prolongou, uma vez que não havia mão de obra qualificada, e também por ter existido a necessidade de fazer novas arrecadações para custear a montagem, tendo sido o artesão, Vicente Ferreira da Silva, o responsável por colocar a máquina em operação, com grande dificuldade, mas notável genialidade, uma vez que a torre não possuía todos os elementos necessários para receber o relógio, o que forço Mestre Vicente a fabricar peças complementares, no que foi bem sucedido. As máquinas da Ungerer são bastante simples e robustas, uma característica já conhecida pelos cratenses, vide a nota veiculada pelo “O Araripe”, em uma de suas edições de 1861:

“O machinismo é muito simples, e todas as peças de uma solidez que resistirá a todas as influências das estações, e afrontará os séculos”.

É notória a resistência da máquina. Em 12 de dezembro de 1982, um incêndio alarmou a população do Crato, a torre do relógio em chamas, e o risco de o fogo atingir o restante do templo, fez com que muitas pessoas caíssem em verdadeiro desespero. Na torre, além do relógio, dois sinos fundidos no Pernambuco, e bastante ornamentados, também representavam valioso patrimônio, um datado de 1848, e outro maior, datado de 1869, ambos também resistiram ao fogo voraz.

Em 1983, foi concluída a restauração do relógio, que foi executada pelo técnico, Nonato Barbosa. As escadas e patamares em madeira foram substituídos por uma laje e uma escada em ferro, que deram muito mais segurança aos operadores. Bem conservado e com funcionamento regular, o relógio fica sob os cuidados do sacristão, Mateus, que foi também responsável por me recepcionar e me acompanhar durante a visita a torre. Agradeço também ao Pe. José Vicente, e ao Pe. Francisco Roserlândio, que possibilitaram a produção desse material.

Coluna da Hora da Praça Padre Cícero

Foto: Roberto Junior

Iniciada em 20 de novembro de 2019, com o processo de desmontagem, foi finalizada no mês corrente a restauração do relógio da coluna da hora da Praça Padre Cícero, uma iniciativa que faz parte do processo de reforma do logradouro, e contou com esforços conjuntos da SEINFRA (Secretaria de Infraestrutura) e SECULT (Secretaria de Cultura), por meio da DIPAC (Diretoria de Patrimônio Cultural) de Juazeiro do Norte.

Obra prima da carreira de Mestre Pelúsio, o relógio da coluna foi construído entre 1929 e 1931, e ocupou durante alguns anos o casarão do Padre Cícero, sendo doado à prefeitura logo após a morte do sacerdote, em 1934. A máquina é extremamente complexa e cheia de peculiaridades, fatores que tornaram ainda mais desafiador o processo de restauração, o que demandou a mão de obra do Mestre Geraldo Ramos Freire, experiente relojoeiro de Juazeiro do Norte, e que aprendeu os fundamentos da arte nas Oficinas Salesianas, estas montadas a partir da antiga oficina de Mestre Pelúsio. Aos 82 anos, Mestre Geraldo já forma seus sucessores, tendo sido auxiliado no processo pelos seus filhos, Marcus Aurelius e Junú.

Mestre Geraldo Ramos Freire, junto ao mecanismo. Foto: Marcus Aurelius

Originalmente, a máquina era composta por quatro mecanismos distintos. Além do relógio, existe o carrilhão, que é responsável por acionar o martelo do sino – este fundido em 1938, também por Pelúsio Correia de Macedo – permitindo o badalar das horas, e o calendário, aliado ao mecanismo das fases da lua. Mestre Pelúsio projetou e construiu uma máquina capaz de marcar segundos e terceiros, além dos dias da semana (incluindo o 29 de fevereiro, nos anos bissextos), meses do ano e fases da lua. Ao longo das décadas, o relógio passou por diversas intervenções, que danificaram irreversivelmente o calendário, restando somente algumas engrenagens do mecanismo de fases da lua.

A partir desses fragmentos do mecanismo de fases da lua, uma vez que é desconhecido o paradeiro dos croquis originais do relógio, o Mestre Geraldo teve de executar cálculos complexos para que o relógio tornasse a marcar as fases, no que foi bem sucedido. Atualmente, a máquina encontra-se em período de observação, o que demanda cerca de 30 dias de acompanhamento diário por parte do mestre relojoeiro. Totalmente analógico, usando somente a gravidade como força motriz, esse tipo de mecanismo necessita sempre desse tipo de procedimento, que é padrão para seu funcionamento perfeito.

Outro grande desafio, inédito na carreira de Mestre Geraldo, foi transferir a máquina principal do relógio para o térreo da coluna, o que demandou a construção de um complexo sistema de eixos de transmissão e caixa de satélite. A iniciativa facilitará bastante a manutenção do mecanismo, tornando-a também mais segura, uma vez que não será mais necessário que o operador suba constantemente até o topo da coluna para dar corda ou analisar a máquina. Para além disso, a adoção de uma porta em vidro, e iluminação em LED, permitirá aos frequentadores da praça acompanhar todo o funcionamento e beleza da obra de Mestre Pelúsio.

Durante meses, nós do Cariri das Antigas estivemos fazendo levantamentos acerca dos relógios estacionários da região, pesquisa ainda em desenvolvimento. Temos no Cariri, exemplares franceses feitos em 1861, ainda em perfeito funcionamento, entretanto, os relógios construídos por Mestre Pelúsio nada deixam a dever em relação aos europeus. Infelizmente, a maioria das máquinas estão desativadas, por motivos diversos, o que torna ainda mais rara e louvável a iniciativa da gestão municipal, que além de restaurar, optou por usar a mão de obra de um mestre relojoeiro com notório saber, e que é Tesouro Vivo do estado do Ceará.

Destacamos também a responsabilidade que as prefeituras e paróquias possuidoras deste tipo de mecanismo possuem, uma vez que eles são testemunhas de uma arte com poucos representantes na região, e peças históricas de grande relevância. A reativação e conservação deles deve ser considerada urgente.

Fonte: Cariri das Antigas

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