Adensamento domiciliar atinge 5,6% da população brasileira e 8,1% da fortalezense

Blog do  Amaury Alencar


Moradores do Beco da Teleceará receberam notificação para desapropriação de suas residências. No centro, Maria Zilma Ferreira  (Alex Gomes/O Povo)
Moradores do Beco da Teleceará receberam notificação para desapropriação de suas residências. No centro, Maria Zilma Ferreira (Alex Gomes/O Povo)
Todos os dias, 1,1% dos brasileiros abrem as portas e janelas de moradias que têm como paredes externas materiais não-duráveis. Outros 2,8% começam o dia sem fazer uso de banheiros de uso exclusivo. O adensamento domiciliar excessivo é realidade para 5,6% da população e a dificuldade de pagar o aluguel tira o sono de 4,8%. Os dados foram extraídos do relatório "Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira 2019", divulgado em novembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e resumem em quatro características alguns tipos de restrições ao direito à moradia adequada enfrentados pela população brasileira.
A partir de dados analisados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) com base na Síntese, o Ceará apresentou em 2018 - os dados do IBGE só são vistos por região pelo Dieese após alguns meses da divulgação da análise nacional -  4% de sua população sem uso de banheiro exclusivo, 1,8% com moradias com materiais não-duráveis, 6,5% com adensamento domiciliar e 4,9% com aluguéis excessivos. Nos dois últimos indicadores, Fortaleza apresenta 8,1% da população nessas condições.
Segundo o relatório "Fortaleza que queremos", publicado em 2015, a Cidade tem 843 assentamentos precários que abrigam 1,077 milhão de habitantes predominantemente de baixa renda, que ocupam de forma ilegal e clandestina terrenos de propriedade pública. São ainda 246.231 imóveis em baixas condições de moradia, totalizando a surpreendente marca de 44% da população de Fortaleza residindo em vulnerabilidade social.
O estudo considerou como assentamento precário as porções do território da Cidade onde residem comunidades em situação de grande vulnerabilidade, decorrente de um ou mais dos fatores como grande incidência de crimes; doenças devido à ausência de saneamento; localização em zonas de riscos (acidentes, alagamentos, desmoronamentos etc.); grande distância entre o assentamento; e serviços públicos de saúde, educação, cultura, esporte e lazer, dentre outros quesitos.
Para Fabiano Lobo, secretário executivo da Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional (Habitafor), as inadequações são características comuns em grandes centros urbanos. "Já conseguimos beneficiar mais de 23 mil famílias com unidades habitacionais nesta gestão, em parceria com o governo estadual, além de providenciar 12 mil papéis da casa e realizar mais de duas mil obras de melhorias em residências, como a construção de banheiros. No entanto, todas as cidades do mundo têm déficit habitacional - umas mais, outras menos. Fortaleza é a quinta maior cidade do Brasil e também possui esses gargalos", pontua.
"Todas as quintas-feiras, eu e a secretária nos reunimos com as lideranças na sede da Habitafor para receber as demandas da comunidade por meio das associações de moradores, estruturar as equipes e depois entrar em contato direto com as famílias. A partir dessas e de outras informações, podemos fazer o levantamento dos números dos NIS das pessoas, confirmar a condição de vulnerabilidade e agendar a visita das equipe de engenharia", afirma. Em nota, o governo do Estado afirmou que foram entregues 3.744 unidades habitacionais em 2019 e, para 2020, estão previstas outras 3.465.
Para janeiro, o secretário executivo espera ter a resposta da iniciativa privada sobre o Projeto Novo Centro, que pretende estimular a ocupação habitacional na região central por meio da viabilização de até 900 unidades habitacionais. "Estamos na fase de pesquisa de intenção para fazer um levantamento de quais empresas privadas querem investir nessas moradias no Centro. Trinta e seis imóveis já foram analisados e identificados como viáveis para ocupação", destaca.
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Quando o direito à moradia esbarra na desapropriação
Dona Maria Zilma Ferreira mal comprou a casa no Cocó e se viu diante do mesmo drama que a levou ao beco surgido como um caroço na área nobre da cidade: o local tinha os dias contados. O diagnóstico foi entregue há poucas semanas em papel timbrado da Prefeitura e dizia que a casa dela e a dos vizinhos faziam parte de uma ocupação irregular, com o prognóstico de extirpação - ou, em outras palavras, a desocupação completa para a reintegração da posse de uma vila que, segundo o documento, "se embrenhava na via pública de modo a prejudicar o tráfego local e causar insegurança aos moradores da circunvizinhança".
Em julho deste ano, a faxineira, que não consegue mais trabalhar por conta de inúmeros problemas de saúde, havia deixado o Beco da Galinha, nas proximidades da avenida Silas Munguba, em virtude de uma obra de mobilidade urbana da Prefeitura e do governo do Estado. À época, as obras de um binário impactaram profundamente a vida de cerca de 90 famílias, que lutaram para que o valor de indenização das casas, que foram avaliadas entre R$ 50 mil e R$ 70 mil, se mantivessem, já que a Prefeitura passou a ofertar em média apenas R$ 25 mil.
"Meu marido adoeceu durante esse processo. A gente saía com o emocional muito abalado dessas reuniões. A minha casa foi avaliada em apenas R$ 16 mil. O que eu iria conseguir comprar com esse valor?", lembra. "Quando finalmente conseguimos vender a casa por um pouco mais, mudamos de endereço e meu marido morreu de câncer. No final, fiquei feliz porque agora ele não teve que passar por isso mais uma vez, já que a casa onde estou agora está com os dias contados. De novo", afirma.
Entidades, como o Escritório de defesa de direitos humanos Frei Tito de Alencar (EFTA) e o Núcleo de Habitação e Meio Ambiente da Defensoria Pública do Estado do Ceará (NUHAM/DPE-CE), têm recebido números crescentes de queixas e denúncias de comunidades que buscam defesa judicial ou extrajudicial para garantir o direito social à moradia. "Somos pessoas simples. A maioria não teve a chance de estudar e muitos não sabem ler e escrever. Se não fosse por esse pessoal que vem até aqui orientar a gente, nem sei o que seria", reflete Maria Zilma.
Morar com dignidade
Mestre em planejamento urbano e regional e pesquisadora do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará (Lehab-UFC), Valéria Pinheiro comenta sobre as condições desejadas para moradias e que políticas são necessárias para se atingir melhores índices ligados às condições dos lares no Brasil. 
O POVO - O que seria uma moradia digna?
Valéria Pinheiro - A moradia é a variável que mais explicita as desigualdades sócio-territoriais. Sobre a dimensão do morar bem ou morar mal incidem elementos que sobrepõe violação de direitos. Quando a gente fala de moradia digna, estamos falando para além do teto e quatro paredes. Estamos falando de uma moradia bem localizada, com acesso à infraestrutura urbana, serviços públicos, que não onere demasiadamente o bolso do morador. Este é, inclusive, um dos itens que avalia se a pessoa está se encaixando no déficit habitacional ou não. Moradia digna também implica em segurança da posse: a pessoa não precisa ser proprietária do terreno, com documento em cartório, inclusive, há vários instrumentos que podem regularizar a posse, como a pessoa morar em um local após cinco anos, usar a casa para moradia e se o imóvel tiver menos de 250 m². Outros aspectos dizem respeito a salubridade da casa: que tenha ventilação, receba sol, seja protegida de inundação e que tenha acesso a esgoto etc.
OP - Qual a sua opinião sobre as políticas públicas para moradia nos âmbitos municipal e estadual?
Valéria - Temos muita dificuldade de enxergar o que tem sido feito pelos governos municipal e estadual, como uma política pública, no sentido de ser algo integrado e continuado. O que se teve nos últimos anos foi o "deixar por conta" dos recursos do Minha Casa Minha Vida (MCMV) pra suprir as demanda habitacional. O que se considerou como política habitacional foi isso: a execução de conjuntos do MCMV, cujos recursos são do governo federal. A gente considera que para se efetivar uma política de habitação é essencial a garantia de terra urbana de qualidade. Quando a gente fala que o principal elemento para uma moradia digna é a localização da casa, isso significa que o poder público tem a obrigação de garantir a terra estruturada para a moradia popular. Não estamos falando de pegar terreno de ninguém, mas sim que existem instrumentos legais, como o IPTU progressivo, para as pessoas que não utilizam um terreno há muitos anos. 
OP - O que seria prioritário quando se fala em moradia?
Valéria - É a garantia de terra urbana em uma política habitacional. E não há atuação nesse sentido da Prefeitura nem governo. Resta para o MCMV terrenos na periferia da periferia, às vezes fora de Fortaleza, com pouco acesso à estrutura urbana. Não dá mais pra esperar recursos do governo federal recursos para a construção de conjuntos habitacionais. Prefeitura e governo do Estado precisam acionar recursos e estrutura próprios e priorizar esse processo e agora, principalmente, porque não vai vir mais do governo federal. Todos os dias aumentam as listas de pessoas inscritas no Habitafor, demandando moradia, ainda mais em um cenário de crise, quando não se consegue pagar aluguel nem acessar financiamentos. (Flávia Oliveira)
 
Quando a moradia é precária
 
Segundo relatório do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), publicado no último mês, há principalmente quatro inadequações que representam restrições ao direito à moradia adequada, em seus elementos de acessibilidade econômica e habitabilidade:

Ausência, no domicílio, de banheiro de uso exclusivo dos moradores
Ou seja, um cômodo com instalações sanitárias e para banho, cujo uso, no cotidiano, não é compartilhado com moradores de outros domicílios.
Utilização de materiais não-duráveis nas paredes externas do domicílio
Nesse critério, são considerados adequados os domicílios cujas paredes externas foram construídas predominantemente de alvenaria (com ou sem revestimento), de taipa revestida ou de madeira apropriada para construção. São classificados como inadequados os domicílios com paredes de taipa não-revestida, de madeira aproveitada (como tapumes ou madeira retirada de paletes) e de outros materiais.
Adensamento domiciliar excessivo
Situação em que o domicílio tem mais de três moradores para cada cômodo utilizado como dormitório.
Ônus excessivo com aluguel
Situação em que o valor do aluguel iguala ou supera 30% do rendimento domiciliar. Entende-se que essa situação constitui uma inadequação na medida em que o elevado comprometimento da renda com o aluguel pode impedir o acesso dos moradores a outras necessidades básicas.

Fonte: Síntese de Indicadores Sociais - Uma análise das condições de vida da população brasileira 2019 (IBGE)  


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