NA CADEIA - Lula na PF, em Curitiba, após conceder uma entrevista: programas evangélicos na TV e conversas políticas (./.)
Mas o Brasil, como dizia Tom Jobim, não é coisa para principiantes, e, a despeito dessa ficha da pesada, Lula resiste na forma de um espectro político. Sua capacidade de recuperar o prestígio perdido entre a maior parte da população após a farta relação de malfeitos é discutível. Na esquerda, porém, ele continua sendo o maior nome por aqui (o que também diz bastante sobre a qualidade da esquerda no país).
De quebra, pode ainda pregar uns bons sustos nos adversários de fora do universo petista, conforme mostra uma pesquisa exclusiva VEJA/FSB sobre as eleições presidenciais de 2022. Um dos dados mais interessantes do levantamento, realizado entre 11 e 14 de outubro, consiste nas projeções do que seria hoje um confronto de segundo turno entre Jair Bolsonaro e as figuras mais conhecidas da esquerda. Lula perde por 46% a 38% (a margem de erro é de 2 pontos porcentuais para mais ou para menos), mas se sai melhor que políticos de fora da cadeia. Fernando Haddad, batido por Bolsonaro na última eleição, perderia novamente do atual presidente em 2022 por 47% a 34%. O pedetista Ciro Gomes repete o fiasco de 2018 na pesquisa VEJA/FSB: não chegaria sequer ao segundo turno. Para especialistas, Lula continua a ser uma alternativa forte à esquerda porque soma a fidelidade da base petista à lembrança dos fugazes tempos de prosperidade de sua era no poder. “O primeiro governo dele foi muito virtuoso. Manteve políticas de FHC e foi capaz de oferecer duas coisas que o brasileiro médio deseja: estabilidade macroeconômica e inclusão social. A resiliência de Lula vem dessa imagem que o eleitor tem dele”, avalia o cientista político Carlos Pereira, professor da FGV-RJ.
INIMIGO ÍNTIMO – Bolsonaro e Moro: o ministro é o único que ganharia do presidente em um eventual segundo turno
INIMIGO
ÍNTIMO – Bolsonaro e Moro: o ministro é o único que ganharia do
presidente em um eventual segundo turno (Eraldo Peres/AP/AP)
O recuo tiraria Lula de trás das grades, uma vez que seu processo ainda não transitou em julgado, mas não seria suficiente para sua pretensão política, porque ele ainda ficaria inelegível pela Lei da Ficha Limpa, que veta a candidatura de condenado em duas instâncias. Pelo mesmo motivo, Lula recusa-se a aceitar a progressão ao regime semiaberto a que tem direito desde setembro por ter cumprido um sexto da pena e ter tido bom comportamento. A mudança de status permitiria a ele sair da cadeia para trabalhar ou até ir para prisão domiciliar, mas sem poder disputar eleições, pois continuaria ficha-suja. O ex-presidente mantém a cantilena de que só sairá da cadeia se tiver sua inocência reconhecida — para ele, aceitar a medida paliativa seria concordar com a condenação imposta pelo então juiz Sergio Moro e confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) e pelo STJ.
O julgamento que de fato importa a Lula é o do recurso que pede a suspeição de Moro com base em várias alegações, que vão dos procedimentos em relação ao petista (como a condução coercitiva em 2016, antes de ele ter sido intimado a depor) à aceitação do convite para ser ministro da Justiça do governo Bolsonaro, e por ter auxiliado de forma ilegal o Ministério Público Federal na acusação, como demonstraram diálogos entre ele e o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da Lava-Jato em Curitiba, revelados pelo site The Intercept Brasil em parceria com veículos como VEJA.
A questão será decidida pela Segunda Turma do STF, que tem cinco ministros. Dois votaram contra a pretensão do petista — Edson Fachin e Cármen Lúcia. Gilmar Mendes, que pediu vistas e prometeu devolver o processo à pauta até novembro, e Ricardo Lewandowski são votos certos a favor de Lula, o que jogaria a decisão nas mãos do ministro Celso de Mello, que já colocou Moro sob suspeição uma vez. Em 2013, ao julgar um habeas-corpus apresentado pelo doleiro Rubens Catenacci, condenado no caso Banestado, Mello entendeu que o então titular da 2ª Vara Criminal de Curitiba havia extrapolado suas funções ao monitorar os advogados do réu, inclusive com interceptação telefônica, e ajudar o trabalho da acusação — as duas reclamações são feitas também pela defesa de Lula no atual processo. Se prevalecer a tese de suspeição, o julgamento que deixou o petista inelegível será anulado. Nesse caso, ele deixará de ser ficha-suja e poderá se candidatar nas eleições.
ESTRATÉGIA – Doria, no Japão: tentativa de virar a alternativa de centro-direita
ESTRATÉGIA – Doria, no Japão: tentativa de virar a alternativa de centro-direita (Governo do Estado de São Paulo/.)
Embora seja a maior ameaça vinda da esquerda, a eventual volta de Lula ao palco eleitoral pode, apesar do paradoxo, representar uma boa notícia para o presidente, já que permitiria a ele repetir o discurso vitorioso que o levou ao poder: evocar o fantasma da vitória do PT. Para Rafael Cortez, analista político da Tendências Consultoria, não há dúvida de que Bolsonaro tem como principal fonte de capital político o combate à esquerda. “O melhor cenário para ele seria enfrentar o PT, mas não necessariamente Lula, que representa um risco muito maior que Haddad”, afirma Cortez. Por isso, entende o especialista, o presidente usa a estratégia de mobilização permanente do eleitorado que responde mais rapidamente a uma eventual ameaça de volta da esquerda.
PROMISSOR – O apresentador Luciano Huck: conversas políticas constantes
PROMISSOR – O apresentador Luciano Huck: conversas políticas constantes (Antonio Milena/.)
O apresentador evita colocar-se como candidato, porém tem mantido uma agenda de encontros cujo principal tema é a discussão de problemas do país. Sem estar filiado a nenhuma legenda, mas militante de movimentos de renovação política suprapartidários como RenovaBR e Agora!, ele tem conversado com líderes de siglas diversas — a última especulação é que iria para o Cidadania. Já o ex-juiz da Lava-Jato também nega ser presidenciável, diz que apoia Bolsonaro por uma questão de lealdade, conforme afirmou recentemente em entrevista a VEJA, mas nem o capitão nem seus aliados mais próximos acreditam nisso.
O potencial eleitoral de Moro é enorme. Ele aparece à frente em quatro cenários de segundo turno. Além de vencer o presidente, derrota Haddad, Huck e Lula (veja o quadro). Na mesma pesquisa, o ex-juiz da Lava-Jato é apontado como o melhor ministro do governo por 31% dos entrevistados, bem acima do segundo colocado, Paulo Guedes (Economia), com 6%. A população também apoia algumas de suas propostas, entre elas o encarceramento após condenação em segunda instância — 70% são a favor da medida.
CAMPANHA – Fernando Haddad: nome oficial do PT, mas fará o que Lula mandar
CAMPANHA – Fernando Haddad: nome oficial do PT, mas fará o que Lula mandar (Ricardo Stuckert/.)
POUCOS VOTOS – Ciro: longe de ser alternativa da esquerda para 2022
POUCOS VOTOS – Ciro: longe de ser alternativa da esquerda para 2022 (Miguel Schincariol/AFP)
Lula passa parte do tempo na cela vendo programas evangélicos na TV aberta e anotando o nome dos pastores e as ideias que defendem, numa tentativa de, quando for solto, reconquistar esse contingente religioso que já o apoiou, mas migrou para Bolsonaro. Até alguns petistas de carteirinha trocaram de barco. Levantamento feito por VEJA com dados do TSE mostra que 2 631 filiados ao PT foram para o PSL de Bolsonaro, num movimento que supera a questão ideológica. É um indicativo de uma onda maior. A aposta é que, com essa volatilidade, do mesmo jeito que foram, esses eleitores podem voltar. Como a advogada Karina Magalhães, de 29 anos, de Maracaju (MS), que é filha de professora e desde muito jovem teve contato com o movimento sindical da classe, mas trocou o petismo pelo bolsonarismo depois da Lava-Jato. “Bolsonaro foi a opção para ter renovação, ruptura, mudança”, afirma Karina, eleitora do PT de 2002 a 2014. Agora ela se diz “totalmente contra” algumas das propostas de Bolsonaro, vê o presidente “perdido” e mal influenciado pelos filhos e já não garante o voto nele em 2022.
A ameaça à reeleição de Bolsonaro, de direita ou de esquerda, será maior ou menor dependendo do desempenho do presidente. O analista político da FSB Alon Feuerwerker diz que o capitão precisa se preocupar em evitar um “efeito Macri”, referência ao presidente argentino Mauricio Macri, que deve perder a eleição para a esquerda kirchnerista em razão da crise econômica. “Os principais concorrentes do presidente são dois nomes não filiados a nenhum partido e que nem podem concorrer em 2022: a estagnação econômica e a taxa de desemprego”, afirma. Ainda faltam três anos para as eleições, uma eternidade no frenético e volúvel tabuleiro nacional do poder. Um fracasso de Bolsonaro e a permanência por mais tempo do indesejável clima de polarização radical, que destrói novas alternativas de liderança, representam o alimento capaz de fortalecer o espectro Lula — e a velha assombração política pode ressurgir, fazendo o país retroceder às retóricas e discussões do passado. O Brasil não é mesmo para principiantes.
Colaborou João Pedroso de Campos
Veja. Com