Autuações do ICMBio caem pela metade no Ceará e fiscalização de crimes ambientais antes comuns vai a zero
Autuações envolvendo crimes ambientais antes corriqueiros no Estado, como carcinicultura ilegal ou construção em áreas verdes, caíram para zero nos nove primeiros meses deste ano. Durante três meses do ano, não foi registrada nenhuma autuação pelo ICMBio, algo sem precedentes na série histórica dos dados, que vem desde 2009. Especialistas denunciam sucateamento do órgão no início do governo Jair Bolsonaro
Órgão máximo da fiscalização de unidades de conservação federais do Brasil, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio)
tem funcionado neste ano no Ceará mais como órgão de trânsito de Jijoca
de Jericoacoara. Entre as 36 autuações lavradas pelo órgão de janeiro a
setembro, 32 envolvem infrações de trânsito nas dunas da praia paradisíaca.
Ou seja, mesmo com
o amplo rol de ações alvo da fiscalização do ICMBio – desde
desmatamento até obras ilegais em áreas verdes, por exemplo –, quase 90%
de todas as multas feitas em 2019 pelo do órgão no Ceará foram por
trânsito irregular em Jericoacoara. Quase todas foram registradas em
julho, quando ocorreram 24 dessas autuações.
Multas aplicadas pelo ICMBio mês a mês desde 2017:
Na comparação com anos anteriores, o que se percebe é uma mudança expressiva tanto na quantidade quanto no teor das multas.
No mesmo período do ano passado, por exemplo, o ICMBio lavrou 71 autos
de infração, dez deles embargando obras de expressivo potencial
poluidor, além de 15 grandes ações de desmatamento ilegal. Em 2017, lote
ilegal descoberto na Área de Proteção da Serra da Meruoca foi embargado
e gerou multa de R$ 75 mil.
Velhos conhecidos das equipes de fiscalização, os viveiros ilegais de carcinicultura
– criação em grande escala de camarão – eram flagrados e destruídos
todos os anos no Estado, gerando 20 embargos e multas de expressivo
valor entre 2011 e 2018. Nos oito primeiros meses deste ano, no entanto,
o número de ações de combate a todos estes tipos de práticas foram a
zero.
Além das multas de trânsito em Jericoacoara, foram coibidos pelo órgão neste ano uma “lesão a árvore” no Parque Nacional de Ubajara e uma criação de gado irregular na praia do Batoque, em Aquiraz.
Completam a lista de multas do ICMBio em 2019 a apreensão de uma
espingarda de caça e a autuação de uma pessoa por uso de fogos de
artifício sem autorização em Jericoacoara. Todas as multas aplicadas
foram de baixo valor, em torno de R$ 1 mil.
Três meses sem nenhuma infração
O levantamento tem base em pedido de informação feito pelo O POVO ao Ministério do Meio Ambiente, com base na Lei de Acesso à Informação (LAI). Entre
março e maio deste ano, também foi registrado um total de zero
infração, fenômeno que não é observado em nenhum outro período de todos
os dados da fiscalização ambiental do Estado, desde 2009 até hoje.
Especialistas denunciam esvaziamento do ICMBio
“Parou totalmente o
desmatamento? Zerou a contaminação da água pela carcinicultura ilegal?
Zerou a degradação de áreas pela mineração? É óbvio que não. O que o que
está acontecendo é um desmonte estrutural de órgãos de fiscalização
ambiental, como o ICMBio”, denuncia o geógrafo Jeovah Meireles,
professor da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Para o
pesquisador, a mudança de postura tem relação com a mentalidade da
gestão Ricardo Salles no Ministério do Meio Ambiente, mais leniente com o
avanço de atividades econômicas sobre áreas protegidas. “É uma lógica
orientada para ampliar e aprofundar a degradação dos sistemas
ambientais, de olho no avanço das madeireiras, do agronegócio, da
especulação imobiliária”.
Para a bióloga
Francisca Soares de Araújo, professora da UFC e coordenadora de um
projeto no Parque Nacional de Ubajara, é visível o processo de
“sucateamento” fiscalização ambiental no Estado. “Não é culpa dos
profissionais, que são muito qualificados, mas há déficit de pessoal, de
infraestrutura, de equipamentos. Os funcionários estão se aposentando e
não são repostos, os carros quebrando, os terceirizados que ajudavam
estão sendo dispensados”, diz.
“Você há de convir
que a humanidade, o povo cearense, não criou consciência de uma hora
para outra e não está fazendo nada mais de errado. O que não está
existindo mais é fiscalização”, corrobora o biólogo Álamo Saraiva,
coordenador do laboratório de paleontologia da Universidade Regional do
Cariri (Urca). “O que eu já vi neste ano de mineração em leito de rio,
em encosta, em área de inclinação irregular.. e isso está entregue a
ninguém”, denuncia.
Ministério silencia diante das críticas
Há mais de duas
semanas, O POVO tenta ouvir o Ministério do Meio Ambiente sobre a
mudança nos indicadores da fiscalização ambiental. Foi questionado à
pasta, entre outros pontos, inclusive se a redução poderia ser atribuída
a uma redução da fiscalização dos órgãos de controle. Mais de cinco
contatos, o primeiro deles por email no último dia 17 de setembro, foram
feitos ao longo deste tempo. Dois dias depois, a reportagem enviou
outro email para o MMA.
Até agora, no
entanto, não houve qualquer resposta do MMA sobre o caso. Procurados
diretamente, fiscais e coordenadores de áreas do ICMBio se recusaram a
falar com a reportagem. "Olha, eu adoraria falar sobre isso, mas há uma
orientação direta de que toda entrevista seja feita através de Brasília,
pelo Ministério", disse uma das fontes.
Criado em 2007
durante a gestão de Marina Silva (Rede) no Ministério do Meio Ambiente, o
ICMBio é uma autarquia vinculada ao MMA. Diferente do Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), mais focado na conservação do
patrimônio natural e nos recursos naturais de forma geral, o ICMBio é
responsável por monitorar especificamente as unidades de conservação
federais, como parques nacionais e florestas nacionais.
Atualmente,
existem nove unidades do tipo no Ceará, sendo as duas maiores os Parques
Nacionais de Ubajara e Jericoacoara. Outras áreas relevantes são as
Áreas de Proteção Ambiental (APA) do Delta da Parnaíba, da Serra da
Ibiapaba, da Chapada do Araripe e da Serra da Meruoca.
O POVO
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