Todos os dias, 1,1% dos brasileiros abrem
as portas e janelas de moradias que têm como paredes externas materiais
não-duráveis. Outros 2,8% começam o dia sem fazer uso de banheiros de
uso exclusivo. O adensamento domiciliar excessivo é realidade para 5,6%
da população e a dificuldade de pagar o aluguel tira o sono de 4,8%. Os
dados foram extraídos do relatório "Síntese de indicadores sociais: uma
análise das condições de vida da população brasileira 2019", divulgado
em novembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
e resumem em quatro características alguns tipos de restrições ao
direito à moradia adequada enfrentados pela população brasileira.
A partir de dados analisados pelo Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) com base
na Síntese, o Ceará apresentou em 2018 - os dados do IBGE só são vistos
por região pelo Dieese após alguns meses da divulgação da análise
nacional - 4% de sua população sem uso de banheiro exclusivo, 1,8% com
moradias com materiais não-duráveis, 6,5% com adensamento domiciliar
e 4,9% com aluguéis excessivos. Nos dois últimos indicadores, Fortaleza
apresenta 8,1% da população nessas condições.
Segundo o relatório "Fortaleza que queremos", publicado
em 2015, a Cidade tem 843 assentamentos precários que abrigam 1,077
milhão de habitantes predominantemente de baixa renda, que ocupam de
forma ilegal e clandestina terrenos de propriedade pública. São ainda
246.231 imóveis em baixas condições de moradia, totalizando a
surpreendente marca de 44% da população de Fortaleza residindo em
vulnerabilidade social.
O estudo considerou como assentamento precário as
porções do território da Cidade onde residem comunidades em situação de
grande vulnerabilidade, decorrente de um ou mais dos fatores como grande
incidência de crimes; doenças devido à ausência de saneamento;
localização em zonas de riscos (acidentes, alagamentos, desmoronamentos
etc.); grande distância entre o assentamento; e serviços públicos de
saúde, educação, cultura, esporte e lazer, dentre outros quesitos.
Para Fabiano Lobo, secretário executivo da Secretaria
Municipal do Desenvolvimento Habitacional (Habitafor), as inadequações
são características comuns em grandes centros urbanos. "Já conseguimos
beneficiar mais de 23 mil famílias com unidades habitacionais nesta
gestão, em parceria com o governo estadual, além de providenciar 12 mil
papéis da casa e realizar mais de duas mil obras de melhorias em
residências, como a construção de banheiros. No entanto, todas as
cidades do mundo têm déficit habitacional - umas mais, outras menos.
Fortaleza é a quinta maior cidade do Brasil e também possui esses
gargalos", pontua.
"Todas as quintas-feiras, eu e a secretária nos
reunimos com as lideranças na sede da Habitafor para receber as demandas
da comunidade por meio das associações de moradores, estruturar as
equipes e depois entrar em contato direto com as famílias. A partir
dessas e de outras informações, podemos fazer o levantamento dos números
dos NIS das pessoas, confirmar a condição de vulnerabilidade e agendar a
visita das equipe de engenharia", afirma. Em nota, o governo do Estado
afirmou que foram entregues 3.744 unidades habitacionais em 2019 e, para
2020, estão previstas outras 3.465.
Para janeiro, o secretário executivo espera ter a
resposta da iniciativa privada sobre o Projeto Novo Centro, que pretende
estimular a ocupação habitacional na região central por meio da
viabilização de até 900 unidades habitacionais. "Estamos na fase de
pesquisa de intenção para fazer um levantamento de quais empresas
privadas querem investir nessas moradias no Centro. Trinta e seis
imóveis já foram analisados e identificados como viáveis para ocupação",
destaca.
Quando o direito à moradia esbarra na desapropriação
Dona Maria Zilma Ferreira mal comprou a casa no
Cocó e se viu diante do mesmo drama que a levou ao beco surgido como um
caroço na área nobre da cidade: o local tinha os dias contados. O
diagnóstico foi entregue há poucas semanas em papel timbrado da
Prefeitura e dizia que a casa dela e a dos vizinhos faziam parte de uma
ocupação irregular, com o prognóstico de extirpação - ou, em outras
palavras, a desocupação completa para a reintegração da posse de uma
vila que, segundo o documento, "se embrenhava na via pública de modo a
prejudicar o tráfego local e causar insegurança aos moradores da
circunvizinhança".
Em julho deste ano, a faxineira, que não consegue mais
trabalhar por conta de inúmeros problemas de saúde, havia deixado o Beco
da Galinha, nas proximidades da avenida Silas Munguba, em virtude de
uma obra de mobilidade urbana da Prefeitura e do governo do Estado. À
época, as obras de um binário impactaram profundamente a vida de cerca
de 90 famílias, que lutaram para que o valor de indenização das casas,
que foram avaliadas entre R$ 50 mil e R$ 70 mil, se mantivessem, já que a
Prefeitura passou a ofertar em média apenas R$ 25 mil.
"Meu marido adoeceu durante esse processo. A gente saía
com o emocional muito abalado dessas reuniões. A minha casa foi
avaliada em apenas R$ 16 mil. O que eu iria conseguir comprar com esse
valor?", lembra. "Quando finalmente conseguimos vender a casa por um
pouco mais, mudamos de endereço e meu marido morreu de câncer. No final,
fiquei feliz porque agora ele não teve que passar por isso mais uma
vez, já que a casa onde estou agora está com os dias contados. De novo",
afirma.
Entidades, como o Escritório de defesa de direitos
humanos Frei Tito de Alencar (EFTA) e o Núcleo de Habitação e Meio
Ambiente da Defensoria Pública do Estado do Ceará (NUHAM/DPE-CE), têm
recebido números crescentes de queixas e denúncias de comunidades que
buscam defesa judicial ou extrajudicial para garantir o direito social à
moradia. "Somos pessoas simples. A maioria não teve a chance de estudar
e muitos não sabem ler e escrever. Se não fosse por esse pessoal que
vem até aqui orientar a gente, nem sei o que seria", reflete Maria
Zilma.
Morar com dignidade
Mestre em planejamento urbano e regional e
pesquisadora do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade
Federal do Ceará (Lehab-UFC), Valéria Pinheiro comenta sobre as
condições desejadas para moradias e que políticas são necessárias para
se atingir melhores índices ligados às condições dos lares no Brasil.
O POVO - O que seria uma moradia digna?
Valéria Pinheiro - A moradia é a
variável que mais explicita as desigualdades sócio-territoriais. Sobre a
dimensão do morar bem ou morar mal incidem elementos que sobrepõe
violação de direitos. Quando a gente fala de moradia digna, estamos
falando para além do teto e quatro paredes. Estamos falando de uma
moradia bem localizada, com acesso à infraestrutura urbana, serviços
públicos, que não onere demasiadamente o bolso do morador. Este é,
inclusive, um dos itens que avalia se a pessoa está se encaixando no
déficit habitacional ou não. Moradia digna também implica em segurança
da posse: a pessoa não precisa ser proprietária do terreno, com
documento em cartório, inclusive, há vários instrumentos que podem
regularizar a posse, como a pessoa morar em um local após cinco anos,
usar a casa para moradia e se o imóvel tiver menos de 250 m². Outros
aspectos dizem respeito a salubridade da casa: que tenha ventilação,
receba sol, seja protegida de inundação e que tenha acesso a esgoto etc.
OP - Qual a sua opinião sobre as políticas públicas para moradia nos âmbitos municipal e estadual?
Valéria - Temos muita dificuldade de
enxergar o que tem sido feito pelos governos municipal e estadual, como
uma política pública, no sentido de ser algo integrado e continuado. O
que se teve nos últimos anos foi o "deixar por conta" dos recursos do
Minha Casa Minha Vida (MCMV) pra suprir as demanda habitacional. O que
se considerou como política habitacional foi isso: a execução de
conjuntos do MCMV, cujos recursos são do governo federal. A gente
considera que para se efetivar uma política de habitação é essencial a
garantia de terra urbana de qualidade. Quando a gente fala que o
principal elemento para uma moradia digna é a localização da casa, isso
significa que o poder público tem a obrigação de garantir a terra
estruturada para a moradia popular. Não estamos falando de pegar terreno
de ninguém, mas sim que existem instrumentos legais, como o IPTU
progressivo, para as pessoas que não utilizam um terreno há muitos
anos.
OP - O que seria prioritário quando se fala em moradia?
Valéria - É a garantia de terra urbana
em uma política habitacional. E não há atuação nesse sentido da
Prefeitura nem governo. Resta para o MCMV terrenos na periferia da
periferia, às vezes fora de Fortaleza, com pouco acesso à estrutura
urbana. Não dá mais pra esperar recursos do governo federal recursos
para a construção de conjuntos habitacionais. Prefeitura e governo do
Estado precisam acionar recursos e estrutura próprios e priorizar esse
processo e agora, principalmente, porque não vai vir mais do governo
federal. Todos os dias aumentam as listas de pessoas inscritas no
Habitafor, demandando moradia, ainda mais em um cenário de crise, quando
não se consegue pagar aluguel nem acessar financiamentos. (Flávia
Oliveira)
Quando a moradia é precária
Segundo relatório do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), publicado no último mês, há
principalmente quatro inadequações que representam restrições ao direito
à moradia adequada, em seus elementos de acessibilidade econômica e
habitabilidade:
Ausência, no domicílio, de banheiro de uso exclusivo dos moradores
Ou seja, um cômodo com instalações sanitárias e para
banho, cujo uso, no cotidiano, não é compartilhado com moradores de
outros domicílios.
Utilização de materiais não-duráveis nas paredes externas do domicílio
Nesse critério, são considerados adequados os
domicílios cujas paredes externas foram construídas predominantemente de
alvenaria (com ou sem revestimento), de taipa revestida ou de madeira
apropriada para construção. São classificados como inadequados os
domicílios com paredes de taipa não-revestida, de madeira aproveitada
(como tapumes ou madeira retirada de paletes) e de outros materiais.
Adensamento domiciliar excessivo
Situação em que o domicílio tem mais de três moradores para cada cômodo utilizado como dormitório.
Ônus excessivo com aluguel
Situação em que o valor do aluguel iguala ou supera 30%
do rendimento domiciliar. Entende-se que essa situação constitui uma
inadequação na medida em que o elevado comprometimento da renda com o
aluguel pode impedir o acesso dos moradores a outras necessidades
básicas.
Fonte: Síntese de Indicadores Sociais - Uma análise das condições de vida da população brasileira 2019 (IBGE)
O Povo